Ano: 2004
Organizador(es): Alice Casimiro Lopes & Elizabeth Macedo
Editora: Papirus
Número de Páginas: 192
ISBN: 8530807294
Apresentação:
O campo de ensino de ciências assume, atualmente, no Brasil, características que afirmam sua consolidação, como, por exemplo, a existência de uma Associação Brasileira de Pesquisa em Ensino de Ciências, a ABRAPEC. O trabalho dessa associação é, ainda, intensificado pelas ações da Secretaria para Assuntos de Ensino da Sociedade Brasileira de Física (SBF), da Divisão de Ensino da Sociedade Brasileira de Química (SBQ) e da Sociedade Brasileira de Ensino de Biologia (SBenBio). Esse conjunto de instituições organiza congressos e publicações nas áreas de ensino das disciplinas específicas e desenvolve esforços no sentido de ampliar a pesquisa em suas respectivas áreas.
O maior desenvolvimento da pesquisa em ensino de ciências no Brasil está associado à constituição de uma problemática própria de pesquisa, decorrente das inter-relações dos campos de conhecimento específico com a educação. Os investimentos governamentais na área desempenharam papel fundamental nesse processo. A intensificação da valorização do ensino de ciências no país iniciou-se nos anos 1950. Após a Segunda Guerra Mundial, o incremento do desenvolvimento científico-tecnológico e a constituição de uma mentalidade pragmática e tecnológica, mutuamente inter-relacionados, favoreceram a defesa da formação científica da população. As ciências foram instituídas como os conhecimentos capazes de unificar um mundo dividido, na medida em que eram entendidas como espaços neutros de comunicação entre os povos (Lopes, 1998). Assim, mais facilmente desenvolveu-se a correlação acrítica entre o desenvolvimento produtivo do país e a formação em ciências da população.
As ações governamentais de fomento dessa área de ensino foram intensificadas, com a criação de projetos oficiais que se mantiveram ininterruptos desde essa época. Nos anos 1950, o Instituto Brasileiro de Ciências e Cultura (Ibecc) foi o marco inicial, logo seguido pelos centros de ciências (nos anos 1960) e posteriormente pelo Programa de Expansão e Melhoria do Ensino (Premen), nos anos 1970 e 1980. Em 1983, foi instituído o Subprograma Educação para a Ciência (Spec), constante do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PADCT) da Capes, e atualmente o CNPq ainda mantém o programa de Educação em Ciência & Tecnologia. Nesse contexto favorável, surgiram os programas de pós-graduação com linhas de pesquisas voltadas especificamente para o ensino de ciências, que redundaram na criação do Comitê de Ensino de Ciências e Matemática, na Capes, englobando alguns dos programas de pós-graduação nessas áreas.
Paralelamente à garantia de financiamentos, ampliou-se o número de educadores em ciências que realizaram cursos de pós-graduação na área, o que levou Carvalho (1993) a afirmar que, de 1985-1995, os «amadores» foram substituídos pelos «profissionais». Os pesquisadores em Ciências (químicos, físicos e biólogos), organizadores de importantes projetos pioneiros, alicerçados em um auto-didatismo na área educacional, foram sendo substituídos por educadores em Ciências, com formação específica, via pós-graduação em Educação.
Com a consolidação da área, foram sendo construídos princípios teórico-metodológicos mais consistentes para os estudos em ensino de ciências, substituindo-se o foco inicial no desenvolvimento de projetos e no relato de experiências, por um maior desenvolvimento de pesquisas. Com essa passagem para um perfil mais acadêmico, a inter-relação com grupos de pesquisa estrangeiros se efetivou em bases mais sólidas, com a conseqüente valorização de pesquisas relacionadas com questões de ensino e aprendizagem. Uma das temáticas mais freqüentemente abordadas refere-se às novas metodologias de ensino centradas no construtivismo, em sintonia com o movimento internacional de pesquisa das concepções prévias dos alunos (DUIT, 1987; POSNER et al, 1982). Outras visam: relacionar os conteúdos ensinados com o cotidiano, analisar modelos e analogias, investigar concepções epistemológicas de professores, desenvolver propostas para uma formação docente mais adequada, valorizar a experimentação, produzir materiais didáticos alternativos à esfera comercial, defender o ensino com base na história da ciência, analisar as questões de linguagem no ensino de ciências, bem como questionar perspectivas epistemológicas empírico-positivistas.
A despeito dessa diversidade profícua de temas e da ampliação e aprofundamento das discussões teóricas na área, o diálogo entre os estudos em ensino de ciências e o campo do currículo ainda tem sido empreendido com pouca ênfase em discussões sobre questões históricas, políticas e culturais. Os estudos em currículo de ciências, não apenas no Brasil como também na literatura internacional, ainda têm-se voltado preferencialmente para proposições curriculares que privilegiam novas abordagens metodológicas. Uma preferência herdeira de uma tradição universalista que contribui para a naturalização dos processos de seleção e de organização dos conhecimentos científicos nos currículos escolares. A ênfase em aspectos metodológicos e epistemológicos freqüentemente desconsidera a educação como campo de produção cultural, portanto intrinsecamente político e social. Por vezes também desconsidera as especificidades do conhecimento escolar diante dos conhecimentos científicos de referência. Entender a mediação pedagógica do conhecimento implica considerar que as finalidades sociais da escolarização não são determinadas pela lógica do conhecimento científico de referência.
Embora ainda não sejam maioria, os estudos que seguem uma abordagem mais sociológica do currículo de ciências vêm se avolumando, seguindo uma linha de certa forma herdeira das preocupações de Kuhn. Ganha importância a idéia de que o conhecimento científico é uma construção que segue padrões estabelecidos pelas instituições científicas, com suas culturas e práticas, bem como por crenças sociais e pessoais. Nessa linha, por exemplo, pode-se destacar o clássico estudo de Latour e Woolgar (1997) que apontava a ciência como uma fabricação social que se estabelece em um contexto material próprio que, de certa forma, interfere em seus resultados. Mais recentemente, numa perspectiva pós-colonial, começaram a surgir estudos que questionam as relações de poder que constituem as comunidades científicas, ressaltando que as perspectivas mais freqüentemente excluídas pertencem aos grupos culturalmente marginalizados.
Este livro pretende contribuir para a ampliação do diálogo entre as discussões teóricas do ensino de ciências e o campo do currículo. Procuramos, em sua organização, selecionar estudos que focalizam questões culturais, políticas e sociais do currículo de ciências. Essas questões são tratadas de perspectivas diversas, em virtude da diversidade dos projetos de pesquisa dos quais se originam.
O artigo de Attico Chassot, “Ensino de Ciências no começo da segunda metade do século da tecnologia”, nos faz percorrer uma período significativo da história do ensino de ciências no Brasil, apresentando as implicações do lançamento do satélite soviético Sputnik para as práticas na área. Nessa história, o autor focaliza as relações entre questões políticas e culturais e as concepções pedagógicas, bem como os processos de intervenção (usualmente tratados como inovação curricular) desenvolvidos a partir dos projetos americanos para o ensino de ciências. Ao nos apresentar essa história, Chassot igualmente revela como fez parte dela e como suas próprias concepções pedagógicas foram construídas e reconstruídas nessa história, especialmente no que concerne à interpretação dos modelos científicos.
O artigo de Alice Casimiro Lopes, “Políticas de currículo: mediação por grupos disciplinares de ensino de ciências e matemática”, por sua vez, apresenta alguns dos resultados de sua pesquisa sobre os processos de mediação das políticas curriculares pelos grupos disciplinares em ensino de disciplinas específicas da área de ciências e matemática. A autora focaliza, nesse trabalho, como o discurso sobre competências, interdisciplinaridade, tecnologias e contextualização – marca da reforma do ensino médio – é interpretado diferentemente nos textos das disciplinas da área de ciências e matemática dos parâmetros para o ensino médio. Com base nessa investigação e nos trabalhos de Stephen Ball e Basil Bernstein, aponta para o questionamento do modelo das políticas curriculares como uma produção de textos homogêneos pelo poder central. A essa interpretação contrapõe a interpretação de que as políticas são produzidas em diferentes contextos, em um constante processo de recontextualização, no qual atuam, com poder desigual, todo corpo social da educação.
O artigo de John Willinsky, “Ciência e a origem da raça”, faz parte de um projeto de pesquisa que objetivou discutir como “o desejo de conhecimento” se tornou uma importante arma do imperialismo britânico. O trabalho de Willinsky abordou diferentes disciplinas do currículo e trazemos, neste volume, suas conclusões em relação à ciência. O autor analisa como a racialização da ciência se beneficiou da expansão colonial, ao mesmo tempo em que a justificava. Como base em autores ligados ao pós-colonialismo e lançando mão de dados de inúmeros estudos, o texto se propõe a entender como a ciência concebeu o conceito de raça, oferecendo uma das mais impactantes lições de imperialismo. Embora focalizando especialmente o auge do colonialismo britânico, Willinsky apresenta indicadores de que alguns de seus efeitos ainda hoje podem ser vistos nas escolas.
Seguindo na linha de estudos pós-coloniais, o artigo de Elizabeth Macedo, “Ciência, tecnologia e desenvolvimento: Uma visão cultural do currículo de ciências”, apresenta resultados parciais de pesquisa em andamento sobre currículos de ciências do Rio de Janeiro nos últimos 30 anos. A autora argumenta que a centralidade dos estudos culturais no campo do currículo tem potencial político, uma vez que a pluralidade do espaço cultural permite a articulação de resistências variadas às formas instituídas pelos aparatos de poder. Com essa perspectiva, o texto busca compreender como os currículos de ciências têm colaborado na construção e na manutenção da diferença, ou, mais especificamente, da diferença que exclui. Para tanto, a autora se propõe a ler as tradições hegemônicas nos currículos de ciências tendo como contraponto as discussões do pós-colonialismo, especialmente os trabalhos de Bhabha e Said, e, no campo das ciências, de Harding.
O artigo de Antonio Carlos Amorim, “Os roteiros em ação: multiplicidade na produção de conhecimentos escolares”, partindo de uma definição de currículo como narrativa em acontecimentos, trabalha com dados de projeto de pesquisa que acompanhou o uso do exercício como metodologia de ensino d professores de biologia. Fundamentado preferencialmente em Deleuze e Guatarri, o autor discute como são geradas linhas de fuga da linearidade no uso que os sujeitos fazem dos exercícios. Fica evidente, dessa forma, como os ritmos convencionais das relações pedagógicas estruturam relações espaço-temporais e disciplinares e criam condições de novas desestruturações.
Pretendemos, com esses artigos, apresentar ao leitor um pouco do que vem sendo produzido em currículo de ciências no Brasil e oportunizar a ampliação do debate em torno dessa área de estudos e pesquisas. Esperamos que esse debate possa contribuir, cada vez mais, para a maior consolidação da produção de conhecimento em ensino de ciências e em currículo.
Alice Casimiro Lopes & Elizabeth Macedo
Sumário:
Apresentação Alice Casimiro Lopes & Elizabeth Macedo | [7] |
Ensino de ciências no começo da segunda metade do século da tecnologia Attico Chassot | [13] |
Políticas de currículo: mediações por grupos disciplinares de ensino de ciências e matemática Alice Casimiro Lopes | [45] |
Ciência e a origem da raça John Willinsky | [77] |
Ciência, tecnologia e desenvolvimento: uma visão cultural do currículo de ciências Elizabeth Macedo | [119] |
Os roteiros em ação: multiplicidade na produção e conhecimentos escolares Antonio Carlos Rodrigues de Amorim | [153] |
Referências Bibliográficas: CARVALHO, João Pitombeira de (1993). Avaliação e perspectivas do ensino de ciências e matemática no Brasil. In: <em>Avaliação e perspectivas da pesquisa em Educação. Relatório da ANPEd.</em> DUIT, Reinders (1987). Research on student's alternative frameworks in science-topics, theoretical frameworks, consequence for Science Teaching. In: NOVACK, J.Proceedings the second International Seminar "Misconceptions and Educational Estrategies in Science and Mathematics" , vol. 1. Ithaca, Cornell University, pp. 151-162. LATOUR, B & WOOLGAR, S. (1997).A vida de laboratório: A produção de fatos científicos. Rio de Janeiro: Relumé Dumará. LOPES, Alice Casimiro (1998) A disciplina quimica: curriculo, epistemologia e historia.Episteme,n. 5, vol. 3. Porto Alegre, pp. 119-142. POSNER, G. J. ; STRIKE, K. A.; HEWSON, P. W. & GERTZOG, W.A. (1982). Accomodation of scientific conception: toward a theory of conceptual change. Science Education, n. 66, vol. 2. Londres, pp. 221-227.